Atendendo solicitações, este blog publicará, periodicamente, alguns capítulos do livro Além dos Rios. O autor estará à disposição para receber comentários a respeito.
Para abrir a série, leia abaixo o capítulo "O Encontro":
Para abrir a série, leia abaixo o capítulo "O Encontro":
Ali no Araguaia, mesmo atento à linha e ao movimento das águas, estava pondo em ordem a minha memória e meus sentimentos. O local era propício. O pôr-do-sol, nessa época do ano, reflete cores variadas nas poucas nuvens sobre o rio, fazendo do céu bem alto e azulado um espetáculo que nenhuma criatura humana seria capaz de reproduzir. A natureza tem vida e revela sua bárbara grandiosidade, provocando espíritos mais sensíveis. As primeiras estrelas se descortinam com seu brilho, pela ordem: primeiro as maiores, depois as mais próximas da Terra. Nesse horário é possível observar os pássaros, aos bandos, procurando suas moradas. Nas águas calmas, sonolentas até, jacarés com seus olhos brilhantes movem-se em direção à margem em busca das areias douradas, fofas e quentes. E nos locais de mata rasteira podem-se ver capivaras e veados catingueiros pastando com certa despreocupação, nmas atentos aos movimentos do ambiente.
A paisagem ganha traços diferentes sem perder sua magia. Nessa época as águas do rio oferecem um espetáculo indescritível, como também o brilho da luz nas noites de Lua cheia.
Nos dias que se seguiram, a rotina de pesca foi mantida como um ritual sagrado. Outra região escolhida para a pesca foi a que reúne lagos perdidos por entre as matas, ricos em tucunaré.
Às dezenas, esses lagos são abastecidos no período do inverno, quando o Araguaia e seus afluentes vazam por meio dos corixos e furos. Outra maravilha indescritível.
A pesca do tucunaré exige técnica diferente da pesca de poita, quando a embarcação fica presa num galho ou mesmo ancorada. O barco, movido com motor a gasolina, de rabeta, praticamente sem provocar ruído, se aproxima dos barrancos com galhada. E dali se realizam os arremessos com isca artificial.
O tucunaré é valente e brigador. Ele vem irado em busca da sua presa e luta até o último minuto antes de sair da água.
Em termos de resultado, essa pescaria foi fraca. Poucos peixes morderam a isca, mas em compensação foi rica na observação da natureza. Prazer imensurável diante de um dos cenários mais belos e harmoniosos do país. Já na ida, em direção aos lagos, um bando de mutuns seguia pela trilha que fazíamos dentro de uma picape. Aliás, nessa mesma trilha, dias antes um funcionário do Parque do Cantão viu de perto uma onça que rondava a região calmamente.
Do barco, avistamos um bando de macacos que comiam frutas nas copas de árvores enormes. Eles se movimentavam de um galho para o outro como que se exibindo para nós.
De volta à sede, na hora do almoço, reunidos à mesa, a conversa sempre animada versava sobre as histórias do dia e piadas.
Duas horas de descanso e todos estávamos prontos para uma nova saída pelo Araguaia, só que em nova direção. Agora a pesca seria de barbados, pintados ou mesmo pacus. As piranhas são invasoras. De fato nenhum pescador quer ter em sua isca uma delas. Chegam em cardume, mordem vorazmente a isca. Há ocasião em que o pescador até muda de local para fugir delas. Muitas saem das águas com o anzol torto entre os dentes serrilhados.
À noite, novamente a Lua cheia iluminava as águas e a nós. Durante o jantar, combinava-se a pesca da manhã seguinte.
Desta vez o alvo da pescaria seria o rio Javaés, um dos que formam a Ilha do Bananal. De isca, duas variações: a minhocuçu (grossa, comprida e gosmenta) e nacos de piranha e de outros peixes menores. Em seguida a formação das equipes. Foi quando me exclui. Ninguém entendeu direito. Houve um momento de silêncio. Expliquei que ficaria para fazer uma caminhada de reconhecimento da região, já que a natureza ali é pródiga, cheia de animais e aves raramente vistos. Além do mais, não saberia se um dia voltaria ao Cantão para poder rever tudo aquilo. Buscava um momento só meu.
Respeitada a minha posição, ainda no escuro da madrugada seguinte, ouvi o ronco dos motores, as conversas e as gargalhadas que só podiam partir de pessoas felizes e de bem com a vida. Depois da saída dos barcos o som vinha do canto da passarada. Senti que não poderia ficar mais deitado. Por volta das 6h30 tomei café. O dia já havia nascido e o sol mostrava que não estava para brincadeira.
Num pé de jambo cheio de frutos maduros, um bando de pássaros fazia a sua refeição matinal, gorjeando sem se importar comigo. Segui em direção a uma área de onde descortinavam as águas calmas do Araguaia. Do ponto em que me encontrava até a outra margem a distância era, seguramente, de mais de dois mil metros. Do lado oposto dava para avistar uma praia de areia dourada seguida por vegetação exuberante. Era um campo de visão imponente.
Enquanto admirava aquela beleza, meditando sobre a grandeza do criador de tudo aquilo, fixei a vista num pequeno barco, na verdade uma canoa movida a remo, que se deslocava lentamente na direção do atracadouro próximo de onde eu estava. À medida que se aproximava, percebi apenas uma pessoa remando, que tinha a cabeça voltada na minha direção. A canoa e seu tripulante se encontravam há uns 150 metros de distância da margem quando observei um funcionário do Parque do Cantão misturando areia e cimento, produzindo massa para completar uma obra. Perguntei a ele se conhecia aquele visitante. Ele me disse que não, mas que desceria até o atracadouro para saber quem era, do que se tratava.
Já na margem, em condições de pisar em terra e puxar a canoa, pude identificar melhor aquele homem de longa barba branca. O boné cobria parte de sua cabeça, mas os cabelos, também brancos, ficavam à mostra.
Ele foi logo desejando bom-dia e pedindo licença para se aproximar. De um tambor de plástico azul ele retirou uma pasta de capa dura contendo papéis. Pensei tratar-se de um desses religiosos que se dispõem a visitar as pessoas e pregar suas doutrinas. Era só o que faltava encontrar naquele lugar... Mas tudo é possível.
Ao subir até o pátio de entrada da casa, deu para identificar melhor aquela estranha personagem num lugar cheio de peculiaridades cativantes para um forasteiro como eu. Vestia camisa de gola olímpica branca e esgarçada, com a escrita “Projeto Manuelzão” estampada na frente. De altura mediana e com uma barriga protuberante e braços musculosos, o homem parecia estar acostumado a uma lida incomum. Sua fisionomia mostrava um sorriso, mas sua voz gaguejante revelava emoções contidas há muito tempo. Queria ele gritar, chorar ou apenas expressar a alegria de estar afinando uma prosa com um desconhecido com disposição de ouvi-lo atentamente?
Ajustei duas cadeiras na varanda da casa e o convidei a se sentar, oferecendo-lhe primeiramente água. Em seguida ele começou a contar sua história. Uma história pessoal, toda recortada com lances de aventura, lembranças e espiritualidade.
Tratava-se de Aladir Murta, o navegador solitário que oito anos atrás, naquela manhã quente de 14 de setembro de 2000, havia partido de Barra do Garças sem destino e que veio encostar sua canoa ao meu lado.
Permanecemos ali sentados por várias horas. O tempo era só nosso. A conversa foi recortada de momentos de vazio silencioso, reflexão, lágrimas e muita emoção.
Nunca havia visto aquele homem, nem ele a mim, mas houve uma cumplicidade imediata. Naquela sua pasta de plástico, toda amarfalhada, havia recortes de jornais de diversas cidades ribeirinhas ao longo dos rios das Mortes, Tocantins, Araguaia, Madeira, Guaporé, Mamoré, Japurá, Negro, Solimões, Paraguai, Crixás, Javaés, Amazonas, das Velhas, Cipó e muitos outros mais. O velho tinha em seus guardados ofícios assinados por autoridades públicas, religiosas e militares registrando sua passagem por dezenas de localidades deste Brasil que poucos brasileiros conhecem. Por isso se transformara numa lenda viva. Como já se transformara em assunto jornalístico, tão logo os repórteres dos jornais da região tinham a informação de sua presença, corriam para a beira do rio a fim de registrá-la. Li alguns desses documentos e ouvi sua história atentamente. Aladir era muito mais do que aquele velho de barbas e cabelos brancos. Esses sinais indicavam ser ele um repositório de conhecimento intuitivo e de experiências vividas nos seus mais diferentes pontos de vista.
Os meus companheiros de pesca, ao regressarem para o almoço, foram apresentados ao visitante, que também ficou para almoçar.
Antes de partir para rumo ignorado, combinamos de passar para o papel a sua saga, sem dia nem hora ou local determinados. Até deixei os números dos meus telefones com ele. Em nossos olhares havia a certeza de que esse novo encontro aconteceria.
Dias depois, a pescaria terminou e retornei à minha rotina em São Paulo, distante muitas centenas de quilômetros da barranca do Araguaia e sabe-se lá a qual distância do velho Aladir. Com seu espírito nômade e aventureiro provavelmente estaria numa outra localidade, olhando para o céu, conversando com a natureza e deixando o tempo fluir sem pressa. Mas aquele encontro não me saía da cabeça. O seu olhar, suas histórias, o mistério que envolvia sua abdicação do mundo e sua aventura de navegar, somente navegar, me instigavam.
Aladir havia me encantado. Mas como encontrá-lo? Como localizar um lobo guará solitário em suas andanças, sem endereço e destino certos, a bordo de uma canoa que só fazia descer ou subir rios e suas corredeiras?
Foi quando uma lembrança daquela nossa conversa me tomou de assalto. Lembrei que o velho havia deixado algumas referências para contato, na possibilidade de eu querer retomar mesmo a prosa. Uma dessas referências era o telefone de um departamento da Universidade Federal de Minas Gerais, outra o de uma unidade da Polícia Militar de Mato Grosso e outra ainda o de seu filho Cláudio, pequeno empresário em Palmas, a capital do Tocantins. Vasculhei nas minhas anotações esses números e com eles em mãos sai ao encalço do velho navegador. Afinal, as referências eram positivas. Cheguei até encontrar uma reportagem no site da Universidade Federal de Minas Gerais que descrevia as aventuras de Aladir. Senti-me um garoto novamente, em começo de carreira. Mantive contato com a Universidade Federal de Minas Gerais e lá obtive mais detalhes sobre o aventureiro. Na Polícia Militar de Mato Grosso, dada a rotatividade de postos e de comando, o nome que tinha como referência ninguém soube informar sobre seu paradeiro. Mas, a cada passo nessa investigação, eu ficava mais tentado a continuar buscando fatos sobre aquele navegador que provocava meu instinto de curiosidade sobre a alma humana.
Procurei seu filho por último. Cláudio me atendeu bem, mas não pôde me ajudar. Fazia tempo que não sabia nada do seu pai. Senti firmeza de que estava no caminho certo quando ele terminou uma ligação telefônica dizendo-me:
– Não sei do meu pai. A qualquer momento ele entrará em contato comigo. Tem sido assim nesses últimos anos.
De certa forma foi confortável saber que as referências dadas por Aladir sobre pessoas que o conheciam eram todas verdadeiras. Até no Google havia registro da passagem de Aladir pelo município ribeirinho de Morpará, na Bahia.
Uma força interior me impulsionava em direção ao homem que encontrara no Cantão e ao que ele tinha para contar. Sua história havia me tocado. E estava convicto de que poderia, também, tocar outras pessoas. Conhecer como vive, o que pensa e como age um homem que navega horas, dias, meses, sob chuva e sol, sozinho, em contato direto com a natureza, seria uma boa contribuição para os que ainda acreditam num estilo de vida longe dos medos, de competições irracionais, de ira e do desejo de poder.
Aladir era a antítese do homem de vida moderna e de todas as mazelas e armadilhas trazidas por ela.